segunda-feira, 9 de setembro de 2019




ABEL PRIETO EM PORTUGAL



Na sua recente passagem por Lisboa, tivemos oportunidade de trocar algumas impressões com Abel Prieto, ex-presidente da União de Escritores e Artistas de Cuba, ex-ministro da Cultura, actual director da Oficina do Programa Martiano e Presidente da Sociedade Cultural José Marti.




C – Quando se começou a ouvir falar de Abel Prieto, dizia-se ser “l’enfant terrible” do regime, trazendo ideias e conceitos inovadores no que se refere à cultura e à política do pais em geral. No fundo não seria apenas um jovem a dizer as coisas de uma maneira diferente, mas mantendo os mesmos ideais de Marti e da Revolução Cubana?

AP – Eu creio, Celino, que tentei fazer primeiro na Unión de Escritores e Artistas de Cuba, UNEAC, e depois no Ministério da Cultura, coisas que tinham muito que ver com as ideias de Fidel, quer dizer, tive o privilégio de trabalhar nessa época muito perto de Fidel, inclusive nos anos mais duros, nos anos noventa, nos anos mais amargos, em que Fidel se aproximou muito à cultura, aos artistas, aos escritores e em especial à UNEAC. Creio que seria muito pretensioso atribuir-me, digamos, caminhos novos, caminhos Inéditos ou renovadores. O que pude fazer fiz sempre seguindo o que Fidel ia desenhando e sonhando



C – Para Fidel, a cultura é essencial para transformar as pessoas, para a emancipação humana. De acordo com ele, “sem cultura, não existe liberdade possível”. Foi este conceito que te “obrigou” a permanecer tantos anos como Ministro da Cultura?

AP – Efectivamente, para Fidel pode mudar-se o ser humano e as suas condições de vida. Se é um camponês podes entregar-lhe a terra, se é uma pessoa que não tem onde viver podes dar-lhe um apartamento, podes dar-lhes melhores condições de vida material, mas esse ser humano não se converte num revolucionário se não muda a sua consciência, se não muda as suas ideias. Daí essa frase que tu citas a par daquela ideia Martiana de que “para ser livre há que ser culto”; Fidel a reitera com essa frase, “sem cultura não há liberdade possível”.

Sem cultura tu podes ser manipulado. É o que ocorreu com esta reviravolta à direita na América latina e lamentavelmente também em muitos lugares do mundo, tem que ver com pessoas que são manipuladas de uma maneira muito perversa. Hoje a manipulação com todos estes temas e dados recolhidos nas redes sociais, leva à caracterização do eleitorado por perfis. Percebes como a tradicional manipulação dos meios alcançou um nível de sofisticação realmente assustador? Chamar democracia a umas eleições trabalhadas desse modo é quase uma piada macabra.

Realmente Fidel está convencido desse poder emancipador que tu mencionas na tua pergunta. Convencido de que a cultura está associada à qualidade de vida, não confundindo qualidade de vida com a posse de bens materiais.

Ele estava convencido que o melhor antídoto face ao que chamamos habitualmente consumismo, quer dizer, a ideia desse apetite por possuir, de comprar, de usar, descartar e comprar de novo, essa lógica de desperdício, essa lógica do uso irresponsável dos recursos deste planeta, vai levar-nos ao suicídio colectivo.

De qualquer modo ele considerava que a melhor maneira de combater essa ideia tem a ver com a felicidade, tem a ver com a realização pessoal, tem a ver com a plenitude do ser humano.

O melhor antídoto frente a isso era a posse de uma espiritualidade, de um desfrute, de uma plenitude em termos de poesia, de música, em termos do desfrute das artes, do desfrute do prazer da inteligência e do prazer do conhecimento.

Fidel insistia em que estudar era prazenteiro. Aprender coisas novas era não só acumular informação, como era realizar-se plenamente como ser humano e convertê-lo em algo prazenteiro.

Para Fidel e não só, para Marti e para muitos grandes pensadores da nossa América e de todo o mundo, o conhecimento inclui também uma componente de plenitude e de prazer profundo, real e permanente, não conjuntural nem efémero.



C – Dos variados encontros e longas conversas que tiveste com Fidel, conta-nos um episódio que revele o seu carácter e a importância que ele dava à cultura.

AP – De entre os episódios que vale sempre a pena recordar, corria o ano de 1993 e em que tu acompanhaste de perto o que se passava em Cuba, sabes que foi um ano duríssimo, com o colapso dos transportes urbanos, com uma enorme contracção quanto à oferta alimentar para a população, com limitações gravíssimas em todos os sectores e como dizia a nossa gente com os “alumbrones” em vez dos “apagones” pelos pequenos períodos em que havia electricidade, foi na verdade um momento muito difícil. Nesse ano, no Congresso da UNEAC, Fidel disse: “a cultura é o primeiro que há que salvar”. Vê que coisa tremenda. Num momento do “período especial” em que nos faltava o combustível, nos faltava a alimentação, nos faltava o essencial, ele destaca a cultura como o mais importante.

Claro que ele não nos estava a falar de arte nem de literatura. Ele estava a referir-se a um conceito de cultura mais abrangente que tem que ver com a nação, tem que ver com a identidade, tem que ver com o que somos, como cubanos, o destino do nosso povo, da nossa história, da nossa luta e por aí te revela a transcendência que ele dava à cultura.

Ele estava convencido que a cultura influi nos valores das pessoas. Por exemplo, numa “escola de conducta” ao que chamamos uma escola onde há adolescentes que cometeram delitos, esses jovens são submetidos a um esforço particular para a sua reeducação, para a sua reinserção social, pois nós pensamos que todo o ser humano tem salvação. Inclusive nas prisões, que em muitos países não passam de armazéns de gente descartável, nós preocupamo-nos em realizar trabalhos culturais, existindo até um movimento de teatro de reclusos, tertúlias literárias, etc. Fidel estava convencido que a cultura influi na componente moral do ser humano e na sua capacidade de viver harmonicamente com os demais, ajudando a modificar eventuais comportamentos marginais.



C – A propaganda mafiosa apoiada e difundida por alguns meios de comunicação internacional querem fazer passar a imagem da falta de liberdade de expressão em Cuba. Que nos pode dizer sobre isto o cidadão que por mais de duas décadas teve responsabilidades nesta área?

AP – Quanto à liberdade de expressão, tu conheces bem a cultura cubana e sabes que se há algo que a caracteriza é precisamente a sua liberdade absoluta, a sua liberdade para investigar e aprofundar os nossos problemas. Particularmente, falámos há momentos do cinema cubano, que não foi concebido como arte de propaganda, mas sim como arte para experimentar, para ter a componente crítica e nos colocar perante os nossos problemas quotidianos, ajudando-nos a entendê-los e a solucioná-los.

O filme Fresa e Chocolate, por exemplo, constituiu um importantíssimo papel no combate aos preconceitos contra a homossexualidade, gerando muitos debates em defesa da cubania e ajudando a modificar algumas mentalidades.

As nossas artes gozam de uma extraordinária liberdade e os seus autores exercem essa liberdade com responsabilidade e com um altíssimo nível de compromisso com o que estamos defendendo em Cuba.

Acaba de se realizar o Congresso da UNEAC que foi muito participado e crítico, com a intervenção de vários delegados, sentindo-se uma forte unidade e a vontade de um trabalho mais profundo e revolucionário. A sessão de encerramento contou com a presença do presidente Miguel Diaz-Canel que destacou a importância da cultura cubana e que esta tem de ter um peso social cada vez maior para ajudar o país.



C – Durante a presidência de Obama pareceu que havia alguma vontade de abertura dos EUA para com a cultura cubana. Qual é a situação actual?

AP – É verdade que com Obama se restabeleceram relações, mas embora tenham sido insuficientes porque não suprimiu a proibição de viagens a Cuba, pelo menos sempre autorizava as de carácter cultural, educativo, religioso, científico, etc. Agora com Trump até isso foi proibido com a aplicação integral da Lei Helms-Burton que é uma ofensa a Cuba e ao mundo porque representa o cúmulo da extraterritorialidade, constituindo uma lei imperial inaceitável que tem a ver com a recolonização de Cuba.

De qualquer modo, tu sabes porque conheces bem o nosso país e o nosso povo, nós sobrevivemos a muitas tentativas de nos asfixiar, mas unidos sabemos resistir e dar as devidas respostas, tal como o fazemos desde há 60 anos.

Já este ano tivemos o referendo sobre a nova Constituição o qual teve uma participação maciça de apoio tanto à direcção histórica de Fidel, Raul, Ramiro e tantos outros que assaltaram Moncada ou combateram na “Sierra Maestra”, como à nova direcção presidida por Diaz-Canel, com quadros jovens mas bem preparados para ocuparem cargos de muita responsabilidade, trabalhando no duro dia e noite, pondo o povo como centro do seu esforço e do seu empenho.

 

(Celino Cunha Vieira - Cubainformación)



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