ABEL PRIETO EM PORTUGAL
Na sua recente passagem por Lisboa,
tivemos oportunidade de trocar algumas impressões com Abel Prieto,
ex-presidente da União de Escritores e Artistas de Cuba, ex-ministro da
Cultura, actual director da Oficina do Programa Martiano e Presidente da
Sociedade Cultural José Marti.
C – Quando se começou a ouvir falar de
Abel Prieto, dizia-se ser “l’enfant terrible” do regime, trazendo ideias e
conceitos inovadores no que se refere à cultura e à política do pais em geral.
No fundo não seria apenas um jovem a dizer as coisas de uma maneira diferente,
mas mantendo os mesmos ideais de Marti e da Revolução Cubana?
AP – Eu creio, Celino, que tentei fazer
primeiro na Unión de Escritores e Artistas de Cuba, UNEAC, e depois no
Ministério da Cultura, coisas que tinham muito que ver com as ideias de Fidel,
quer dizer, tive o privilégio de trabalhar nessa época muito perto de Fidel,
inclusive nos anos mais duros, nos anos noventa, nos anos mais amargos, em que
Fidel se aproximou muito à cultura, aos artistas, aos escritores e em especial
à UNEAC. Creio que seria muito pretensioso atribuir-me, digamos, caminhos
novos, caminhos Inéditos ou renovadores. O que pude fazer fiz sempre seguindo o
que Fidel ia desenhando e sonhando
C – Para Fidel, a cultura é essencial
para transformar as pessoas, para a emancipação humana. De acordo com ele, “sem
cultura, não existe liberdade possível”. Foi este conceito que te “obrigou” a
permanecer tantos anos como Ministro da Cultura?
AP – Efectivamente, para Fidel pode
mudar-se o ser humano e as suas condições de vida. Se é um camponês podes
entregar-lhe a terra, se é uma pessoa que não tem onde viver podes dar-lhe um
apartamento, podes dar-lhes melhores condições de vida material, mas esse ser
humano não se converte num revolucionário se não muda a sua consciência, se não
muda as suas ideias. Daí essa frase que tu citas a par daquela ideia Martiana
de que “para ser livre há que ser culto”; Fidel a reitera com essa frase, “sem
cultura não há liberdade possível”.
Sem cultura tu podes ser manipulado. É o
que ocorreu com esta reviravolta à direita na América latina e lamentavelmente
também em muitos lugares do mundo, tem que ver com pessoas que são manipuladas
de uma maneira muito perversa. Hoje a manipulação com todos estes temas e dados
recolhidos nas redes sociais, leva à caracterização do eleitorado por perfis.
Percebes como a tradicional manipulação dos meios alcançou um nível de
sofisticação realmente assustador? Chamar democracia a umas eleições
trabalhadas desse modo é quase uma piada macabra.
Realmente Fidel está convencido desse
poder emancipador que tu mencionas na tua pergunta. Convencido de que a cultura
está associada à qualidade de vida, não confundindo qualidade de vida com a
posse de bens materiais.
Ele estava convencido que o melhor
antídoto face ao que chamamos habitualmente consumismo, quer dizer, a ideia
desse apetite por possuir, de comprar, de usar, descartar e comprar de novo,
essa lógica de desperdício, essa lógica do uso irresponsável dos recursos deste
planeta, vai levar-nos ao suicídio colectivo.
De qualquer modo ele considerava que a
melhor maneira de combater essa ideia tem a ver com a felicidade, tem a ver com
a realização pessoal, tem a ver com a plenitude do ser humano.
O melhor antídoto frente a isso era a
posse de uma espiritualidade, de um desfrute, de uma plenitude em termos de
poesia, de música, em termos do desfrute das artes, do desfrute do prazer da
inteligência e do prazer do conhecimento.
Fidel insistia em que estudar era
prazenteiro. Aprender coisas novas era não só acumular informação, como era
realizar-se plenamente como ser humano e convertê-lo em algo prazenteiro.
Para Fidel e não só, para Marti e para
muitos grandes pensadores da nossa América e de todo o mundo, o conhecimento
inclui também uma componente de plenitude e de prazer profundo, real e
permanente, não conjuntural nem efémero.
C – Dos variados encontros e longas
conversas que tiveste com Fidel, conta-nos um episódio que revele o seu
carácter e a importância que ele dava à cultura.
AP – De entre os episódios que vale
sempre a pena recordar, corria o ano de 1993 e em que tu acompanhaste de perto
o que se passava em Cuba, sabes que foi um ano duríssimo, com o colapso dos
transportes urbanos, com uma enorme contracção quanto à oferta alimentar para a
população, com limitações gravíssimas em todos os sectores e como dizia a nossa
gente com os “alumbrones” em vez dos “apagones” pelos pequenos períodos em que
havia electricidade, foi na verdade um momento muito difícil. Nesse ano, no
Congresso da UNEAC, Fidel disse: “a cultura é o primeiro que há que salvar”. Vê
que coisa tremenda. Num momento do “período especial” em que nos faltava o
combustível, nos faltava a alimentação, nos faltava o essencial, ele destaca a
cultura como o mais importante.
Claro que ele não nos estava a falar de
arte nem de literatura. Ele estava a referir-se a um conceito de cultura mais
abrangente que tem que ver com a nação, tem que ver com a identidade, tem que
ver com o que somos, como cubanos, o destino do nosso povo, da nossa história,
da nossa luta e por aí te revela a transcendência que ele dava à cultura.
Ele estava convencido que a cultura
influi nos valores das pessoas. Por exemplo, numa “escola de conducta” ao que
chamamos uma escola onde há adolescentes que cometeram delitos, esses jovens
são submetidos a um esforço particular para a sua reeducação, para a sua
reinserção social, pois nós pensamos que todo o ser humano tem salvação.
Inclusive nas prisões, que em muitos países não passam de armazéns de gente
descartável, nós preocupamo-nos em realizar trabalhos culturais, existindo até
um movimento de teatro de reclusos, tertúlias literárias, etc. Fidel estava
convencido que a cultura influi na componente moral do ser humano e na sua
capacidade de viver harmonicamente com os demais, ajudando a modificar
eventuais comportamentos marginais.
C – A propaganda mafiosa apoiada e
difundida por alguns meios de comunicação internacional querem fazer passar a
imagem da falta de liberdade de expressão em Cuba. Que nos pode dizer sobre
isto o cidadão que por mais de duas décadas teve responsabilidades nesta área?
AP – Quanto à liberdade de expressão, tu
conheces bem a cultura cubana e sabes que se há algo que a caracteriza é
precisamente a sua liberdade absoluta, a sua liberdade para investigar e
aprofundar os nossos problemas. Particularmente, falámos há momentos do cinema
cubano, que não foi concebido como arte de propaganda, mas sim como arte para
experimentar, para ter a componente crítica e nos colocar perante os nossos
problemas quotidianos, ajudando-nos a entendê-los e a solucioná-los.
O filme Fresa e Chocolate, por exemplo,
constituiu um importantíssimo papel no combate aos preconceitos contra a
homossexualidade, gerando muitos debates em defesa da cubania e ajudando a
modificar algumas mentalidades.
As nossas artes gozam de uma
extraordinária liberdade e os seus autores exercem essa liberdade com
responsabilidade e com um altíssimo nível de compromisso com o que estamos
defendendo em Cuba.
Acaba de se realizar o Congresso da
UNEAC que foi muito participado e crítico, com a intervenção de vários
delegados, sentindo-se uma forte unidade e a vontade de um trabalho mais
profundo e revolucionário. A sessão de encerramento contou com a presença do
presidente Miguel Diaz-Canel que destacou a importância da cultura cubana e que
esta tem de ter um peso social cada vez maior para ajudar o país.
C – Durante a presidência de Obama
pareceu que havia alguma vontade de abertura dos EUA para com a cultura cubana.
Qual é a situação actual?
AP – É verdade que com Obama se
restabeleceram relações, mas embora tenham sido insuficientes porque não
suprimiu a proibição de viagens a Cuba, pelo menos sempre autorizava as de
carácter cultural, educativo, religioso, científico, etc. Agora com Trump até
isso foi proibido com a aplicação integral da Lei Helms-Burton que é uma ofensa
a Cuba e ao mundo porque representa o cúmulo da extraterritorialidade,
constituindo uma lei imperial inaceitável que tem a ver com a recolonização de
Cuba.
De qualquer modo, tu sabes porque
conheces bem o nosso país e o nosso povo, nós sobrevivemos a muitas tentativas
de nos asfixiar, mas unidos sabemos resistir e dar as devidas respostas, tal
como o fazemos desde há 60 anos.
Já este ano tivemos o referendo sobre a
nova Constituição o qual teve uma participação maciça de apoio tanto à direcção
histórica de Fidel, Raul, Ramiro e tantos outros que assaltaram Moncada ou
combateram na “Sierra Maestra”, como à nova direcção presidida por Diaz-Canel,
com quadros jovens mas bem preparados para ocuparem cargos de muita
responsabilidade, trabalhando no duro dia e noite, pondo o povo como centro do
seu esforço e do seu empenho.
(Celino Cunha Vieira - Cubainformación)